Para que se estudem os autores portugueses pelo seu significado na Cultura e Literatura portuguesas e não como meros apêndices da tipologia textual.
CARTA-ABERTA AO SENHOR MINISTRO DA EDUCAÇÃO, AO SENHOR MINISTRO DA CULTURA, À ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA E POPULAÇÃO EM GERAL
Em 1985, ano da comemoração do cinquentenário da morte de Fernando Pessoa, os alunos do 11º ano de Electrotecnia, da Escola Secundária Marquês de Pombal, e eu própria, enquanto sua professora de Português, criámos um Movimento em defesa do Café Martinho da Arcada, após o estudo do poeta Fernando Pessoa e da realização do seu percurso por Lisboa. Nesse deambular pela cidade tomámos conhecimento de que o velho café, espaço expressivamente pessoano, se encontrava ameaçado pela gula dos bancos.
Recolhemos milhares de assinaturas e conseguimos que o Martinho fosse classificado de «imóvel de interesse público» pelo IPPC (Instituto Português do Património Cultural).
Agora, é a dignidade da Escola e do Ensino que está em jogo, o respeito pelos alunos, pelos encarregados de educação e pelos próprios professores, face a uma Nova Reforma que é promulgada, sem que a anterior tenha sido sequer avaliada. Um desatino de reformas que têm vindo a compor o Ensino como uma manta de retalhos, gerando inquietação em todos, alunos, professores e pais.
No caso da disciplina de Português do Secundário (10º, 11º e 12º anos), agora designada de «LÃngua Portuguesa», a situação é deveras preocupante. Com efeito, o texto literário aparece subalternizado em relação ao texto informativo, com a justificação de que assim mais eficazmente os alunos aprenderão «a comunicar: a ler, ouvir, falar e escrever». Na obsessão de «respeitar o discurso que os alunos trazem de casa», leva-se para a sala de aula muito do lixo televisivo, a par de «documentos em suporte de papel» que se distribuem por «editoriais, entrevistas, pequenos anúncios, publicidade, desenhos humorÃsticos, horóscopos, palavras cruzadas». Um leque excessivamente aberto de possibilidades, com que se pretende «motivar» os alunos e onde existe demasiada mediocridade, situação que não se ajusta à Escola, enquanto transmissora de cultura.
Nesta amálgama informativa, em que supostamente se pretende reflectir sobre o «funcionamento da LÃngua» e recuperar os conhecimentos não adquiridos pelos alunos ao longo dos primeiros ciclos de Ensino, a Literatura é tida como uma espécie de maldição, ou seja, a causa de todos os males. Assim, como se de uma punição se tratasse, espreitam sob a designação de «leitura literária», por sua vez dependente de uma tipologia textual, alguns dos autores que definem o nosso Património Cultural e Literário e que constituem uma referência, que está a ser conscientemente destruÃda.
É inadmissÃvel, com efeito, que LuÃs de Camões seja estudado como um exemplo de «texto literário de carácter autobiográfico» (10º ano), impedindo-se a convivência com a variedade dos seus poemas e com o Homem do séc. XVI; que o Padre António Vieira e o seu «Sermão de Santo António aos Peixes» (excertos) seja estudado como um, entre muitos exemplos, de «Texto argumentativo/expositivo-argumentativo» (11º ano), ele que acompanhou criticamente todo o século XVII, que foi mestre de Fernando Pessoa, sendo definido pelo próprio poeta como «Imperador da LÃngua Portuguesa» e que escreveu «Só o esquecimento de Portugal me pode levar a Portugal»; que «Frei LuÃs de Sousa» de Almeida Garrett seja estudado meramente como exemplo de «Texto de teatro», ou que Eça de Queiroz e um dos seus romances, seja o escolhido para exemplificar o «Texto narrativo e descritivo», ou ainda que Cesário Verde, posto à pressa no programa, ainda do 11º ano, seja um exemplo de «texto lÃrico». Esta aberrante inversão continua no 12º ano, aparecendo Fernando Pessoa, depois de «Textos informativos diversos», subordinado ao item «Textos lÃricos», ele que se auto-definiu como «poeta lÃrico-dramático».
Como se viu pelo exposto, o importante na óptica dos autores dos programas, é subordinar os autores à tipologia textual. É precisamente esta situação que ainda pode ser alterada nos manuais dos 11º e 12º anos de «LÃngua Portuguesa», que, neste momento, as editoras preparam.
Que se estudem, pois, os autores portugueses pelo seu significado na Cultura e Literatura portuguesas e não como meros apêndices da tipologia textual. É neste sentido que se convidam todos os interessados a assinar a carta-aberta, na expectativa de que este assunto possa merecer a atenção do Governo e da Assembleia da República.